Cartas da prisão de peniche

Cartas da prisão de peniche

Cartas da Prisão – Peniche
Por José Magro

«Queridos amigos:
Disse-vos já e verificá-lo-ão. A vida prisional é agitada e instável. Quer à superfície – lutas, transferências, evolução variável de situação repressiva. Quer em profundidade – trabalho político e ideológico, quadros e sua modificação, «ligações», e tantos outros aspetos que só indiretamente irão ser abordados.
Quase de súbito deu-se a entrada em greve de fome dos enfermos de Caxias, sem assistência médica na prática. Toda a cadeia é mobilizada. Vive-se numa crescente agitação.
A resposta do diretor, o famigerado João da Silva, ex-comandante do campo de concentração do Tarrafal, não se fez esperar. É a transferência dos doentes para a enfermaria do Aljube, é a dos considerados «cabecilhas» (António Lourenço, J. Maria do Rosário, Falcão, o vosso amigo e outros) para os «curros» respetivos. Para já e para nós é mais um mês de vida celular com as habituais contingências.
O destino ulterior daqueles quatro e de um aventureiro de que já falei foi todavia inesperado. Não já Caxias, mas Peniche.
A cadeia de Peniche em 53, salvo o aspeto exterior, era bem diferente da atual. Mantinha o estilo do velho forte do século XVII. Água de cisterna transportada aos ombros e a balde. Casamatas nas muralhas. Pequenas ruas de edifícios térreos. Camaratas com traços das anteriores funções de cavalariças e de outras. Havia a sensação de recuar uns séculos.
Fomos metidos numa sala maciça, incrustada em rocha. Dela haviam fugido três anos antes Francisco Miguel e Jaime Serra. Cortaram as grades da janela. Desceram a alta muralha por corda. Tornearam o Forte pelo areal. O Chico foi recapturado no dia seguinte. Localizado por cães, quando refugiado num buraco. E mantido depois algemado durante dias no segredo, antes de reenviado para o Tarrafal.
Lá fomos encontrar o nosso Guilherme de Carvalho, por sua vez recém-chegado do Tarrafal, Agostinho Saboga, J. Campino e outros. E, como símbolo, logo à chegada, ajudámos a fechar um buraco que dera em rocha, numa das frequentes tentativas para encontrar saída entre as falhas da pedra.
Também nesse primeiro dia estive para conhecer o «segredo», provocado por um velho sargento-secretário. Queria à força o bruto que lhe indicasse para a ficha o «local do crime» e a «residência»!… Valeu-me aquele estar já ocupado pelo João Honrado, um dos grevistas de Caxias, recambiado da enfermaria e castigado à chegada.
A generalidade dos funcionários e guardas, incluindo o diretor, eram da craveira intelectual do sargentão. No entanto alguns destacavam-se por qualidades particulares.
Era o Tarro, que por princípio contraditava todo o pedido ou observação. Usávamos para com ele um truque que resultava:
– Não se pode ir lavar a roupa, pois não, Sr. Ricardo?
– Pode, pode! – respondia a alimária, inflexível na contradição.
Era o gordo Rosa, atabalhoado e nervoso. Queria cumprir religiosamente as instruções e ia cometendo as mais grosseiras gaffes.
Era o mais odiado de todos, o famigerado Pôpa – hoje, aliás, modificado -, autor da maioria das agressões, responsável por grande parte dos castigos. Lamentava-se de não ter tido ainda oportunidade de liquidar um preso fugitivo…
Mas o génio do aparelho era o chefe dos guardas, Vítor Ramos. Pelo terror e cega disciplina que impunha. Pelo seu frio ódio político. Pelas concepções que perfilhava.
– Os senhores estão aqui para sofrer! É preciso que sofram!
Figuras boçais, brutais ou sinistras, a quase totalidade destes homens! Muitos deles lá se encontram ainda. São autores de inúmeras violências e de incríveis arbitrariedades. Um só limite: a nossa firme unidade, combatividade e coragem. Paralelamente,
a inestimável ajuda das organizações democráticas e da opinião nacional e estrangeira.
Mas aligeiremos a história com um exemplo anedótico da situação. Para que os presos «sofressem» era necessário, entre outras medidas, privá-los quanto possível das distracções. Assim, o xadrez como qualquer outro jogo estava expressamente vedado. Nós, todavia, é que não desistíamos das horas de evasão que o manusear das «brancas» e das «pretas» representa. O mal residia em que, conjunto manufacturado com paciente miolo de pão, verdadeiras obras de arte por vezes, era sistematicamente apreendido, com vida média não superior a meia dúzia de dias. Saía caro!
O nosso Lourenço, sempre engenhoso e meu tradicional adversário, mantinha contudo uma persistência irredutível, quer na feitura das peças quer nas formas inovadoras de defendê-las. Mas em vão! Teve então uma ideia diabólica: a de traçar o tabuleiro no próprio muro do pátio. E substituir as peças por pequenos pedaços de tijolo escuro e de pedra branca. Durante muito tempo o rigoroso Rosa, como um búfalo, arfou à nossa volta. Ante a bruta modéstia do material, não se sentia com incentivo para intervir. Um dia, porém, decerto industriado pelo chefe, tomou a ofensiva:
– Estão a jogar xadrez! Está apreendido!
– Não faz mal – respondeu um de nós – mas não leve só os calhaus. Transporte também o tabuleiro!…
Logo de seguida, nova ideia surge. Acabar de vez com as peças! Riscava-se a «arena» numa simples ardósia. Com o lápis respetivo, traçávamos e apagávamos as iniciais das mesmas, conforme os movimentos…
Perturbado, o homem deixou-nos em paz. Mas, novamente instruído, eis que surge a mão sapuda e suja do sabujo e a frase irritante de sempre:
-Estão a jogar! Está apreendido!
O pior é que o Lourenço fora apanhado de surpresa e estaria certamente a ganhar. Zangou-se. Exigia que devolvesse a ardósia que tinha «roubado». O último termo foi suficiente para que, logo em seguida, víssemos o camarada atirado para o «segredo». Feliz castigo esse, todavia, que lhe permitiu preparar a fuga posterior, conforme vos hei-de vir a contar.
A comida era má, apesar de já melhorada por grandes lutas. Com exceção da família do Guilherme, as outras não estavam em condições de grandes despesas. De resto, Peniche era longe, não havia então possibilidades de «boleias». As visitas eram por isso raras. Valiam bem no entanto, as de agora. Eram de quatro horas, em comum. E permitiam que comesse-mos juntos.
A companheira ficara corajosamente na clandestinidade. Era de comover o cuidado que minha valente mãe punha nestas refeições especiais! Era a toalha. Era o luxo dos guardanapos. Era até o café quente do termo para imitar quanto possível o ambiente da família. Nesse ambiente projetava-se contudo a figura sombria do guarda. Quantas dessas visitas foram interrompidas, a meio da refeição, sob pretextos incríveis!…
As grandes festas, todavia, eram o Natal e a Páscoa. Então, sim! Principalmente a ceia respetiva, sem guarda à vista e por nós cozinhada, sempre largamente abundante, se não tinha o sabor familiar era sem dúvida de desabitual alegria e de convívio fraterno.
E, já agora, um episódio cómico mais, ligado a tais repastos. Havíamos encarregado o Zé Maria, que tinha conhecimentos na lota de Lisboa, de arranjar grossas pescadas para cozer. Desde muito antes, as pescadas eram já prato do dia da conversa.
– Vê lá, Zé Maria, não haja azar com o peixe!
Mas o amigo, seguro de si e da companheira, assegurava que não. Até que surge a data grande de 24 de Dezembro. A hora da camioneta era ansiosamente aguardada para admirar os bichos. Mas ela chega, é ultrapassada – e nada!
O Zé mudava de cor ante os olhos de acusação dos companheiros. Já ninguém abria a boca. Inopinadamente, surge um telegrama para o amigo. Abre-o. Lê. Fica varado.
-Então, Zé?
Mudo, passa a outro o papel maldito. Este soletra bem alto e com voz tremula:
«Pescadas não há stop. Seguem sardinhas de barrica stop. Beijinhos.»
Passou um mau bocado, o pobre do camarada!
Mais tarde tudo se esclareceu. As pescadas sempre haviam chegado. Mas tinham sido cuidadosamente escondidas. E o telegrama fora forjado com habilidade por um grupo de graciosos cruéis.
De resto, apesar de já muito conhecida, a partida do falso telegrama acaba sempre por resultar. Eu próprio que o diga muitos anos depois… Passo a contar.
A Aida estava doente. O trabalho era muito. Por um lado, a necessidade de ganhar o pão, o seu e, em parte, o meu. Por outro, toda a imensa canseira que obrigava o processo de libertação em curso.
Ela sentia-se nervosa e fatigada. Eu sentia-me crescentemente inquieto. Toda a minha atenção se concentrava em si. Queria defendê-la. Propunha medidas de economia que a poupassem. Nem sempre com êxito, aliás. Queria ao menos evitar-lhe qualquer esforço inútil – o que exigia um tremendo trabalho de previsão, de disciplina, de organização, de actividade física e mental. Mandara-lhe essa semana um projecto de programa, inteligentemente elaborado. Cada pequena deslocação era pesada e medida. Tudo estava encarado, enquadrado, em conexão com o resto…
Aguardei a resposta. No dia seguinte, duas horas antes do correio habitual, um telegrama. Abri. Rezava assim:
«Sigo Paris stop. Uma semana stop. Viagem maluca stop. Tem paciência stop. Muitos beijinhos.»
Fiquei varado! Nenhum problema de confiança sentimental se me colocou alguma vez em tantos anos de convívio. Mas atingiu-me seriamente esta ideia obsessiva: a Aida enlouqueceu!
Mas, não. A Aida não tinha enlouquecido. Fora só mais um caso de «telegrama forjado.»

“Cartas da Prisão – Vida Prisional”, ed. Avante!, 2ª ed., 1975, pp.33-35
José Alves Tavares Magro nasceu em Alcântara a 27/03/1920 e faleceu em 22/02/1980. Começou a trabalhar como empregado de escritório, tendo dedicado a maior parte da sua vida à luta contra a ditadura fascista. Passou 29 anos na clandestinidade como militante e funcionário do Partido Comunista Português, 21 anos dos quais na prisão onde foi submetido a violentos interrogatórios, castigos e torturas que lhe arruinaram a saúde. Foi um dos protagonistas da evasão de Caxias a 4 de Dezembro de 1961, no carro blindado de Salazar, voltando a ser capturado pouco depois. Seria libertado apenas a 27 de Abril de 1974.Publicou “Cartas da Prisão” (1975) e um livro de poemas intitulado “Torre Cinzenta” (1980).

Mais elementos sobre a sua biografia prisional aqui.